PEIXES-CACHIMBO DO BRASIL


Edson Campos Perrone & João Luiz Gasparini




                                                                                                                                                                                                          (HABITAT 71 - AGOSTO 2002)


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Microphis aff. lineatus. Na foto de cima, detalhe da cabeça com focinho tubular e boca voltada para cima. Embaixo, espécime de corpo inteiro (em aquário). Fotos: Marcelo Notare.



   Os peixes-cachimbo pertencem à família Syngnathidae, ordem Syngnathiformes, onde também estão agrupados os cavalos-marinhos (gênero Hippocampus). O nome “peixe-cachimbo” foi dado em alusão ao formato do corpo e, principalmente, ao do focinho, quase sempre alongado e com a boca voltada para cima, semelhante a um cachimbo. Como características gerais, possuem corpo envolvido por forte armadura constituída de anéis ósseos articulados, aberturas branquiais reduzidas e ausência de nadadeiras pélvicas. Em algumas espécies as nadadeiras peitorais também estão ausentes enquanto outras têm projeções e filamentos dérmicos na região da cabeça.


Geralmente, os peixes-cachimbo não apresentam locomoção rápida. Costumam ser encontrados em águas litorâneas rasas e calmas, em recifes e pedras cobertos de algas ou entre a vegetação marginal de rios, estuários e manguezais.

 

A sua coloração (tonalidades e padrões), que provavelmente está relacionada com o ambiente onde vivem, mostra grande diversidade, tais como negro, marrom, castanho, oliva, vermelho, verde e amarelo. Alguns apresentam barras verticais claras  sobre fundo escuro ou barras escuras sobre fundo claro. O formato do corpo, o comportamento e o colorido garantem aos peixes-cachimbo excelente camuflagem, o que leva seus predadores e presas a confundi-los com o ambiente.

 

Dawson e Vari (1982) apontam 27 espécies de peixes-cachimbo para o Oceano Atlântico Ocidental. A identificação deste grupo baseia-se sobretudo na disposição das cristas ósseas longitudinais, no número de anéis do corpo, no número de raios   das nadadeiras e em algumas proporções corporais. O Brasil, apesar do incremento das pesquisas ictiológicas, permanece sendo uma lacuna de conhecimentos sobre essa família. Apenas muito recentemente, Carvalho & Guimarães (2000), iniciaram uma revisão taxonômica de alguns gêneros. Tal estudo, em andamento, já revelou que duas espécies bastante comuns e que anteriormente eram identificadas como as mesmas que ocorrem no Caribe — a saber: Bryx dunckeri (Metzalaar) e Microphis brachyurus lineatus (Kaup) — são, na verdade, formas ainda não descritas: Bryx sp.n. e Microphis sp.n. (esta última, trataremos, a seguir, como Microphis aff. lineatus). Além dessas duas espécies, ainda ocorrem no Brasil: Halicampus crinitus (Jenyns); Micrognathus erugatus Herald & Dawson; Pseudophallus mindii (Meek & Hildebrand), Pseudophallus brasiliensis (Dawson); Syngnathus folletti Herald; Syngnathus scovelli (Evermann & Kendall); Cosmocampus albirostris (Kaup); e Minyichthys inusitatus (Dawson). Outras espécies e novas ocorrências são esperadas em futuros levantamentos faunísticos e revisões taxonômicas. As espécies encontradas com mais frequência são Microphis aff. lineatus, entre a vegetação marginal, nas partes baixas dos rios, principalmente nos estuários, e Syngnathus scovelli, no mar, a pouca profundidade, em regiões de bancos de algas.



























Aspecto da cabeça de algumas espécies de peixes-cachimbo.
De cima para baixo: Pseudophallus mindii; Microphis brachyurus lineatus; Amphelikturus dendriticus; Halicampus crinitus; Bryx dunckeri; Syngnathus scovelli. Desenhos: João Luiz Gasparini.





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Syngnathus scovelli. Foto: Edson Perrone.




Os peixes-cachimbo mostram dimorfismo sexual. Os machos possuem uma bolsa incubadora na parte ventral do tronco ou da cauda. Esta bolsa desenvolve-se com o crescimento do peixe, sendo difícil identificar o sexo dos indivíduos jovens.



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Os machos possuem uma bolsa incubadora de ovos. Na foto acima, Microphis aff. lineatus. Nesta espécie, os ovos ficam expostos ao contato direto com o ambiente. Foto: Marcelo Notare.




Segundo Edmonds (1989), o acasalamento envolve várias partes do corpo. O casal adota uma posição vertical, nadando um em volta do outro na tentativa de juntar os corpos. O macho utiliza sua cabeça para acariciar a cabeça da fêmea e move o corpo como um saca-rolhas até que fiquem entrelaçados. Após este ritual, a fêmea insere seu ovopositor na bolsa incubadora do macho e elimina os ovócitos, que são fecundados e carregados por ele até o momento da eclosão. Na maioria das espécies, os prolongamentos laterais da bolsa incubadora dobram-se para dentro, protegendo os ovos. Em outras, como Microphis aff. lineatus, os ovos ficam expostos ao contato direto com o ambiente. Os filhotes, após um período de incubação, são eliminados na água, existindo poucas informações sobre seu desenvolvimento.



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Larva de Microphis aff. lineatus com quatro dias de vida. Desenho: João Luiz Gasparini.




Muito exigentes no que diz respeito à alimentação, os peixes-cachimbo preferem comer presas vivas, tendo sua dieta composta de pequenos organismos de origem animal, sobretudo microcrustáceos encontrados em tufos de briozoários, zooplâncton, larvas de insetos e peixes jovens. Alguns criadores usam comida congelada para alimentar cavalos-marinhos, levando-nos a supor que este tipo de alimento também possa ser aproveitado em cativeiro. No entanto, para o aquariofilista, pode se tornar difícil conseguir suprimentos diários de microorganismos vivos ou quantidades suficientes para congelar, provendo as necessidades dos peixes-cachimbo. Essa exigência alimentar não significa, porém, uma barreira aos que se aventurem a pesquisar a criação destes peixes, uma vez que poderão alimentá-los com Artemia salina, fácil de encontrar nas lojas especializadas, e que deve ser ministrado na forma de náuplios, ou seja, logo após a eclosão dos cistos. As artêmias adultas também devem ser usadas como alimentação complementar.

 

No Brasil, existem poucos estudos, provavelmente devido à dificuldade em realizar coletas de determinadas espécies com número satisfatório de exemplares, ou ao fato de sua sistemática ainda permanecer confusa. Entretanto, no exterior, os peixes-cachimbo vêm recebendo maior atenção, com espaço garantido nas grandes exposições.

 

Vale ressaltar que a coleta indiscriminada, muitas vezes sem permissão do Ibama, somada à crescente poluição ambiental em ambientes estuarinos e aterro de manguezais (ainda comuns no Brasil, apesar de proibido), vêm ameaçando algumas espécies desta família, principalmente os cavalos-marinhos.






 

— Microphis  aff. lineatus —

 

 

Dentre as espécies de peixes-cachimbo que ocorrem no Brasil, a mais comum nas lojas de aquariofilia é Microphis aff. lineatus, vulgarmente chamada de cachimbinho, trombetinha ou agulha. Trata-se de espécie eurialina (penetra na água doce), considerada constante no baixo curso dos rios, ocorrendo em águas salobras de regiões estuarinas. Habita locais de pouca profundidade e correnteza reduzida, em geral sob a vegetação marginal composta de gramíneas e macrófitas aquáticas, principalmente o aguapé (Eichhornia crassipes), onde encontra abrigo e alimento. Esta espécie chega a penetrar rio acima, podendo ser coletada a mais de 100 quilômetros do mar. A estabilidade do ambiente em que vive é função direta da pluviosidade da região. Durante o período de cheia, ocorre aumento da velocidade da correnteza, acarretando desorganização da vegetação marginal com grande carreamento de macrófitas aquáticas flutuantes, o que reduz de modo considerável seu habitat.




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Rio Jucu (ES), onde os autores realizaram pesquisas com Microphis aff. lineatus. Foto: Edson Perrone.


 


É raro coletar indivíduos menores que 80 milímetros, pois os jovens habitam locais diferentes dos adultos, nadando ativamente (ou são carreados pela correnteza), encardumados, fazendo com que, segundo Dawson e Vari (1982), possam ser encontrados a 60 quilômetros da costa.

 

O micro-habitat da espécie é formado de locais pouco profundos, com reduzida correnteza e margens providas de gramíneas (Brachyaria sp.) com partes pendentes sobre a água e outras submersas onde fixam-se as macrófitas aquáticas flutuantes. As coletas, para fins científicos, são realizadas utilizando-se uma peneira (ou confeccionar um peneirão retangular de canos de PVC com saco de malha de náilon tipo mosquiteira de três milímetros de abertura) que deverá ser introduzida sob a vegetação em movimentos rápidos, tomando-se cuidado na hora de inspecionar o material vegetal acompanhante, pois Microphis aff. lineatus costuma ficar preso entre as raízes das gramíneas e das macrófitas aquáticas. Muitas vezes o próprio peixe é confundido com gravetos ou outros detritos vindos na amostragem.



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O ictiólogo João Luiz Gasparini em atividade de coleta de Microphis aff. lineatus no Rio Jucu (ES). Fotos: Edson Perrone.



Os exemplares capturados suportam bem o estresse da coleta, o acondicionamento e o transporte até o laboratório, uma vez que possuem movimentos lentos, facilitando o manuseio e o suprimento de suas necessidades, inclusive de oxigênio. Devem ser acondicionados em sacos plásticos com água do mesmo local de coleta e transportados em caixas de isopor (para evitar choques térmicos e mecânicos).



Individuos

















Frequência de indivíduos de Microphis aff. lineatus coletados no período de outubro 1987 / agosto 1988 na região estuarina do Rio Jucu (ES). Modificado de Perrone (1989).



• Hábitos

 

Em aquário, Microphis aff. lineatus exibe comportamento discreto e bastante sociável, não competindo com outros peixes, razão pela qual não é aconselhável introduzir espécies agressivas e/ou vorazes. Sua movimentação lenta entre a vegetação deve-se às nadadeiras peitorais, enquanto que a caudal é utilizada para deslocamentos rápidos a curta distância. Quando parado, costuma ficar próximo ou apoiado com o dorso nas partes submersas da vegetação e com parte da região caudal voltada para baixo. Este comportamento garante uma perfeita camuflagem. Outra característica bastante interessante é a capacidade de movimentação independente dos olhos, comum a todas as espécies da família Syngnathidae. Tal característica facilita a localização de suas presas e de possíveis predadores.



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A nadadeira caudal é utilizada para deslocamentos rápidos a curta distância. Foto: Marcelo Notare.



• Alimentação

 

Microphis aff. lineatus utiliza seu longo focinho para adquirir, por sucção, os alimentos, entre os quais larvas de insetos, microcrustáceos e formas jovens de peixes. Perrone (1990) constatou ser Microphis aff. lineatus, no Rio Jucu (ES), uma espécie carnívora de hábitos diurnos, alimentando-se de insetos (larvas de plecópteros, larvas de dípteros e larvas de efemerópteros); crustáceos (ovos, larvas e jovens de carídeos e copé-podos); e peixes (Eucinostomus  spp.).

 

Na natureza, modifica seus hábitos à medida que cresce. Os jovens alimentam-se de larvas de insetos, enquanto que os adultos, de crustáceos e peixes. Estas alterações no regime alimentar são de grande importância para a repartição dos recursos intraespecíficos.

 

Em aquário, aceita com facilidade Artemia salina e Daphnia spp., além de larvas de mosquito. Outros alimentos que podem ser oferecidos: plâncton congelado e formas jovens de peixes ovovivíparos.



Alimentos
















Principais alimentos de Microphis aff. lineatus. Fonte: Perrone (1990).


 

• Reprodução

 

Não se conhece muito sobre a biologia reprodutiva de Microphis aff. lineatus, supondo-se seguir padrões básicos de sua espécie irmã do Mar do Caribe, ou seja, com a reprodução ocorrendo no mar, na água doce e na região estuarina. Segundo Dawson e Vari (1982), o jovem da espécie caribenha pode se desenvolver em água doce, estuarina ou marinha.

 

Na região estuarina do Rio Jucu, Perrone (1989) encontrou Microphis aff. lineatus reproduzindo-se durante todo o ano, com maior intensidade em dois períodos: dezembro e, em menor escala, junho. Em 40% dos casos, os machos coletados apresentaram de 49 a 565 ovos na bolsa incubadora. Alguns espécimes tinham suas bolsas completamente cheias, outros com espaços vazios entre os ovos e outros ainda foram capturados com poucos ovos dispersos de modo aleatório. Ao que tudo indica, esta variação do número de ovos na bolsa incubadora não está relacionada com o tamanho do peixe, mas sim com falhas no mecanismo de transferência dos ovócitos produzidos pelas fêmeas para a bolsa incubadora dos machos, ou seja, mais de uma fêmea deposita os ovócitos em um macho ou existe a ocorrência de predação dos ovos por outros peixes, uma vez que a bolsa incubadora desta espécie não apresenta estrutura de proteção.



Maturidade
















Frequência de indivíduos de Microphis aff. lineatus imaturos e maduros, coletados no período de outubro 1987 / agosto 1988 no Rio Jucu. Modificado de Perrone (1989).



 Como nas demais espécies de peixes-cachimbo, o dimorfismo sexual (macho com a bolsa incubadora formada) só aparece quando o peixe atinge determinado tamanho. Perrone (1990) constatou que as fêmeas entram na fase de maturidade sexual com um comprimento médio de 109 milímetros e que os machos começam a apresentar sua bolsa incubadora com um comprimento médio de 112 milímetros.

 

A reprodução de Microphis aff. lineatus em cativeiro ainda não foi observada em sua totalidade. Apenas conseguimos acompanhar alguns machos com ovos na bolsa e a posterior eliminação dos filhotes. Quando nascem, os filhotes são pequenos, frágeis e passam a nadar sem direção através de movimentos rápidos, geralmente à meia água ou próximos do substrato.

 

O fracasso na criação dos filhotes, conseguindo-se apenas uma sobrevivência de oito dias, deve estar diretamente relacionado com a dependência marinha da espécie.




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Os peixes-cachimbo gostam de se camuflar com a vegetação do aquário. Na foto, Microphis aff. lineatus assumindo o posicionamento das folhas de Vallisneria spiralis. Foto: Marcelo Notare.




Agradecimentos

 

Ao professor Claudio Zamprogno (in memoriam) pelas sugestões e críticas apresentadas a este artigo. A Marcelo Notare, Fabio Vieira, Luiz Carlos Spagnol e Artur Alves França pelo apoio.

 

Bibliografia

 

Carvalho, P.H. & Guimarães, R.Z.P. (2000) Duas novas espécies da família Syngnathidae (Teleostei: Gasterosteiformes) da costa do Brasil. XXIII Congresso Brasileiro de Zoologia. Cuiabá, Mato Grosso. Resumo PI 137. PP. 396.


Dawson, C.E. (1970) A Mississippi population of the opossum pipefish, Oostethus lineatus (Syngnathidae). Copeia (4): 772-773.


—. (1979) Notes on Western Atlantic pipefishes with descriptions of Syngnathus caribbaeus n. sp. and Cosmocampus n. gen. Proceedings of biological Society of Washington 92(4): 671-676. 


— & Varri, R.P. (1982) Fishes of the Western North Atlantic (part eight). New Haven. Sears Foudation for Marine Research, Yale University. 198 pp.


Edmonds, L. (1989) Pipefishes for the Marine Aquarium. Tropical Fish Hobbyist 38(8): 58-62.


Figueiredo, J.L. & Menezes, N.A. (1980) Manual de Peixes Marinhos do Sudeste do Brasil. III. Teleostei (2). Museu de Zoologia, Universidade de São Paulo. 90 pp.


Gasparini, J.L. & Teixeira, R.L. (1999) Reproductive aspects of the Gulf Pipefish, Syngnathus scovelli (Teleostei: Syngnathidae), from Southeastern Brazil. Revista Brasileira de Biologia 59(1): 87-90.


Gilmore, R.G. & Hasting, P.A. (1977) Notes on the opossum pipefish Oostethus lineatus from the Indian river lagoon and vicinity, Florida. Copeia (4): 781-783.


— & Dawson, C.E. (1983) Observation on the ecology and distribuition of certain tropical peripheral fishes in Florida. Florida Scientist. 46(1): 31-51.


Guimarães, R.Z.P. (1999) Chromatic and morphologic variation in Halicampus crinitus (Jenyns) (Teleostei: Syngnathidae) from southeastern Brazil, with comments on its synonymy. Revue fr.  Aquariol., 26(1-2): 7- 10.

   Perrone, E.C. (1989) Distribuição sazonal e época de reprodução do peixe-cachimbo Oostethus lineatus  (Pisces: Syngnathidae) em um trecho do Rio Jucu, ES. Revista de Cultura da UFES, (41-42).

   —. (1990) Aspectos da alimentação e reprodução de Oostethus lineatus (pisces, Syngnathidade) no rio Jucú, ES. Anais Soc. Nord. Zool. 3(3): 249-260.


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